O amor do discípulo.
O evangelho de hoje é um daqueles que nós, padres, temos a
tendência de colocar muito açúcar nas nossas explicações até fazê-lo perder
toda força e escândalo.
Jesus continua sua viagem para Jerusalém, a última do seu
ministério público, e, neste momento, grandes multidões o acompanhavam. Ele se
vira para estas pessoas e diz: “Se alguém vem a mim, mas não se desapega de seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos,
seus irmãos e suas irmãs e até da própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc
14,26). Sabemos que entre os grupos de pessoas que aparecem próximos de Jesus
estão a multidão, os discípulos e os apóstolos. As multidões gostam de ouvir a
voz do Mestre (Lc 5,1), vão atrás dele para serem curadas (Lc 5,19; 6,19),
reconhecem nele um homem de Deus (Lc 19,37). Mas diante de suas palavras
exigentes e ações incomuns elas reagem com desprezo (Lc 8,37) ou violência (Lc
22,47; 23,18). A inconstância ou ambivalência das multidões se dá pelo fato de
formarem uma massa que se deixa levar por aquele que grita mais alto ou
consegue manipular mais. Elas não pensam, e só procuram ou o que lhes agrada ou
aquilo que alguém apresenta como sendo o melhor. O que Jesus propõe aos que
estão nesse grupo é que se tornem discípulos: “Quem não carrega a sua cruz e
não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,27). Nesta
perspectiva, o discípulo é aquele que decide seguir o Mestre pessoalmente,
assumindo toda responsabilidade das suas escolhas neste caminho. Ele deixa,
assim, de pertencer à massa e se torna membro da comunidade de Jesus Cristo,
sujeito da própria existência. Vive junto com os irmãos, mas não deixa de ser
responsável pelas decisões pessoais e comunitárias.
Para fazer essa passagem, de multidão a discípulo, é preciso
se desapegar daquilo que é mais
precioso para a pessoa. A tradução utilizada no lecionário já é uma
interpretação. No texto grego se diz “odiar”,
isso porque o hebraico não possui comparativos de superioridade ou
inferioridade (“amar mais”, “amar menos”), mas apenas “amar” ou “odiar”.
Se alguém aceita o convite para ser discípulo de Jesus,
precisa amá-lo mais do que ama pai, mãe, irmãs, irmãos, esposa, filhos,
trabalho... e a própria vida. Como isso seria possível? Em primeiro lugar
através de um “enamoramento” da pessoa e da proposta do Mestre. Assim como um
homem apaixonado coloca em segundo plano tudo que antes achava essencial na sua
vida – pais, trabalho, amigos etc – em vista da amada, assim também acontece
com quem se encanta com Jesus e seu Reino. No caso do discipulado cristão,
porém, acontece algo mais profundo. Cristo não é apenas uma pessoa e sua
proposta apenas um ideal. Ele é Deus e nos oferece o caminho da salvação. O “apaixonamento”
pelo Senhor precisa ser seguido de um ato de fé, de uma total entrega de si e de
um compromisso existencial com Ele.
Renunciar a tudo por Jesus significa não colocar nada no
lugar que pertence a Ele, o de Senhor. A incompatibilidade é entre dois patrões
(“Não podeis servir a dois patrões”): Jesus e o dinheiro, Jesus e a carreira,
Jesus e eu mesmo. Ou seja, entre duas realidades que brigam pelo primado e pela
obediência do ser humano. Não se pode ter dois absolutos na vida de uma pessoa[1].
Para eu ser verdadeiro discípulo de Jesus, preciso fazer
escolhas que O coloquem acima de todas as pessoas que eu amo e acima de mim
mesmo. Podemos começar por coisas bem simples, como ir à Celebração Eucarística/da
Palavra no domingo para só depois pensar no descanso ou lazer; retirar 20 minutos
do meu dia para ouvir Jesus através da leitura de sua Palavra, mesmo quando
tenho uma casa inteira para cuidar; participar ativamente de uma comunidade
através dos grupos de catequese e de seus trabalhos, mesmo quando tenho um
emprego muito exigente.
Todas essas escolhas, porém, não estão em concorrência com o
amor que você tem pela sua família, trabalho e por si mesmo. Elas fazem parte
do caminho do discípulo e foram dadas para que você consiga seguir o Senhor em
todas as realidade da sua vida, transformando-as em “Reino de Deus” e não em
“Reino de Si mesmo”. Isso acontece quando se coloca Jesus em primeiro lugar e
cada decisão é tomada a partir da fé e do amor que temos por ele.
Pe. Emilio Cesar
Pároco de Guaiuba
[1]
Cf. Raniero Cantalamessa, La parola e la vita. Riflessioni sulla Parola di Dio delle Domeniche e
delle feste dell’anno C. 9a Ed., Roma:
Città Nuova Editrice, 2001, p. 340.
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