Eclo 14,16-21
1Cor 2,6-10
Mt 5,17-37
Ouvistes o que foi
dito... Mas eu vos digo (cf. Mt 5,21s).
O evangelho deste domingo continua nos apresentando o
primeiro grande discurso de Jesus presente em Mateus, popularmente conhecido
como sermão da montanha. A palavra “sermão”, no entanto, nos traz à memória a
ideia de “lição de moral”, “carão”. Com certeza não era esta intenção de Jesus
ao proferir as palavras contidas nos capítulos 5 a 7 de Mateus. Por isso
preferimos chamar de “Discurso da Montanha”(cf. Mt 5, 1). Ele contém um
ensinamento profundo sobre a vida do discípulo de Jesus, como deve se portar, o
que deve fazer, como encarar os mandamentos de Deus.
Na passagem ouvida hoje se diz claramente que Jesus não veio
abolir a Lei, mas dar-lhe pleno cumprimento, e ainda, que os seus discípulos
precisam ter uma justiça maior que a dos fariseus e escribas apresentados neste
evangelho (cf. Mt 5,17.20). O que isso significa?
Jesus não veio destruir a Lei e tudo aquilo que está no
Antigo Testamento e propor uma novidade absoluta fundada no sentimento de amor. Ele também não
queria mostrar que o ideal da Lei é inatingível para o homem e a mulher pelo
fato de serem pecadores. Mas desejava conduzir a Lei à plenitude da justiça
salvífica, que consiste na misericórdia (evangelho do próximo domingo: Mt 5,
38-48). Os preceitos antigos tornam-se interiores, atingindo os desejos e os
motivos secretos da pessoa[1].
Os doutores da lei retratados por Mateus estavam muito preocupados com suas
“tradições”[2].
Pensavam que a justiça consistia na maneira certa de lavar copos, pratos, ou
seguir seus costumes, e não se questionavam se os mesmos estavam ajudando a
colocar em prática a Palavra de Deus ou distanciando dela (cf. Mt 15,1-9).
Jesus vem mostrar a importância de interiorizar o cumprimento da Lei:
“Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não matarás! Quem matar será
condenado pelo tribunal’. Eu, porém, vos
digo: todo aquele que se encoleriza com seu irmão será réu em juízo”(Mt
5,21-22).
O quinto mandamento da Lei de Deus não diz respeito apenas à
morte física (Ex 20,13; Dt 5,17), mas também ao ódio que eu posso cultivar dentro
de mim. Se eu alimento a ira interiormente eu estou, de alguma forma, matando
aquela pessoa dentro de mim. Esse pecado pode não atingir a pessoa que odeio,
mas me atinge e me tira da comunhão com o Senhor. Além disso, cultivar o ódio é
muito perigoso porque pode me levar a cometer uma ação concreta, pode me levar
ao pior de todos os pecados, que é atentar contra a vida do próximo. Falamos e
agimos a partir do que temos dentro de nós, a partir do que nosso coração está
cheio. Com o ensinamento de Jesus percebemos que esse, e todos os outros
pecados, começam dentro do coração humano. Se não tivermos atenção a isso, se
não fizermos violência interior[3]
contra nossa tendência ao ódio, ao adultério ou fornicação, ao perjúrio, estamos
nos colocando em situação de perigo, dando ocasião para o pecado. Claro que não
posso afirmar que é a mesma coisa diante de Deus desejar o mal a uma pessoa e
tirar a vida dela. Mas existe uma relação entre as duas realidades e se eu não
“corto o mal pela raiz”, ele vai me levar a ações maléficas. A justiça mais
perfeita de Jesus é esta: seu discípulo precisa combater o pecado desde seu
nascimento, naquela realidade interior que a Bíblia chama de coração. Só assim,
o cristão poderá permanecer em comunhão com Deus.
Essa interiorização da Lei pode, porém, nos levar a um
exagero que alguns setores da Igreja têm caído: confundir sentimento com
pecado. Se uma pessoa me bate na cara, nasce em mim o sentimento de raiva e o
desejo de vingança – quero bater de volta. Essa é uma tendência natural
impossível de ser erradicada. O que Jesus está ensinando não é que não podemos
ter estas tendências naturais, mas que não podemos nos deixar levar por elas.
Precisamos fazer violência contra essas tendências naturais e agir como
discípulos seus. Não é pecado sentir vontade de revidar o mal com o mal, isso é
sentimento! Sentimento não é pecado! O pecado acontece se eu me deixar levar
por esse sentimento e começar a maquinar a vingança com pensamentos, passar a
difamar a pessoa que me fez mal ou fazer algo para prejudicá-la. Sempre que
falo sobre isso vejo na cara do interlocutor uma grande surpresa, como se eu
tivesse dizendo uma novidade, ou um ensinamento contrário ao da Igreja.
Para nos convencer que a moral da Igreja não dá peso para os
sentimentos basta recordar o confesso que às vezes rezamos no ato penitencial:
Confesso a Deus Todo-Poderoso e
a vós, irmãos, que pequei muitas vezes por pensamentos
e palavras, atos e omissões, por
minha culpa, minha tão grande culpa. E peço à Virgem Maria, aos Anjos e Santos,
e a vós, irmãos, que rogueis por mim a Deus, Nosso Senhor.
Nunca a Igreja nos ensinou a pedir perdão pelos nossos
sentimentos, mas pelos nossos pensamentos, palavras, atos e omissões. O
sentimento é uma realidade da nossa vida sobre a qual não temos nenhum
controle. O grande problema da nossa sociedade, porém, é dar muito peso para
ele e achar que somos determinados pelo que sentimos[4],
e não pelo que queremos ou conhecemos. A mesma realidade tem acontecido dentro
da Igreja mas de forma inversa: moralizamos os sentimentos e os classificamos
de negativos (ódio, indiferença, repulsa etc.) e positivos (amor, afeto,
simpatia, etc.). Isso está bem distante do ensinamento de Jesus.
A justiça do cristão não é simples cumprimento de normas
exteriores, mas é busca de comunhão com Deus, que começa na interioridade de
cada um e se expressa em pensamentos, palavras e ações. Somos amados por Deus e
esse amor nos leva a amá-Lo com nossas práticas religiosas e com o amor ao
próximo. Lembrando que amor também não é um sentimento mas ação concreta. Este
caminho da justiça cristã é um caminho de felicidade e por isso o discurso da
montanha começa com as bem-aventuranças.
Pe. Emilio Cesar
Pároco de Messejana
[1] Cf.
Mt 5,17, Nota C, Bíblia de Jerusalém.
[2] Eram
ensinamentos passados oralmente que pretendiam assegurar a observância da lei
escrita, mas iam na verdade mais longe que ela e, às vezes, passavam longe
dela. Basta pensar na tradição apresentada em Mt 15,1-9 que invalida o preceito
de honrar pai e mãe (cf. Mt 15,2, nota d, Bíblia de Jerusalém).
[3] Este
é o sentido das palavras de Jesus: “Se o teu olho direito é para ti ocasião de
pecado, arranca-o e joga-o para longe de ti! De fato, é melhor perder um dos
teus membros, do que todo o teu corpo ser jogado no inferno” (Mt 5,29)
[4]
Basta ver as novelas. Se alguém está apaixonado por outra pessoa, não importa
nada mais – se um dos dois já é casado, se existem grandes probabilidades de
não dar certo, se pertencem a religiões distintas. O que conta é o sentimento.
É como se ele determinasse o ser humano e não existisse nada que lhe fosse
superior.
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