sábado, 15 de fevereiro de 2014

VI DOMINGO DO TEMPO COMUM


Eclo 14,16-21
1Cor 2,6-10
Mt 5,17-37

Ouvistes o que foi dito... Mas eu vos digo (cf. Mt 5,21s).

O evangelho deste domingo continua nos apresentando o primeiro grande discurso de Jesus presente em Mateus, popularmente conhecido como sermão da montanha. A palavra “sermão”, no entanto, nos traz à memória a ideia de “lição de moral”, “carão”. Com certeza não era esta intenção de Jesus ao proferir as palavras contidas nos capítulos 5 a 7 de Mateus. Por isso preferimos chamar de “Discurso da Montanha”(cf. Mt 5, 1). Ele contém um ensinamento profundo sobre a vida do discípulo de Jesus, como deve se portar, o que deve fazer, como encarar os mandamentos de Deus.

Na passagem ouvida hoje se diz claramente que Jesus não veio abolir a Lei, mas dar-lhe pleno cumprimento, e ainda, que os seus discípulos precisam ter uma justiça maior que a dos fariseus e escribas apresentados neste evangelho (cf. Mt 5,17.20). O que isso significa?

Jesus não veio destruir a Lei e tudo aquilo que está no Antigo Testamento e propor uma novidade absoluta fundada no sentimento de amor. Ele também não queria mostrar que o ideal da Lei é inatingível para o homem e a mulher pelo fato de serem pecadores. Mas desejava conduzir a Lei à plenitude da justiça salvífica, que consiste na misericórdia (evangelho do próximo domingo: Mt 5, 38-48). Os preceitos antigos tornam-se interiores, atingindo os desejos e os motivos secretos da pessoa[1]. Os doutores da lei retratados por Mateus estavam muito preocupados com suas “tradições”[2]. Pensavam que a justiça consistia na maneira certa de lavar copos, pratos, ou seguir seus costumes, e não se questionavam se os mesmos estavam ajudando a colocar em prática a Palavra de Deus ou distanciando dela (cf. Mt 15,1-9). Jesus vem mostrar a importância de interiorizar o cumprimento da Lei:

“Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não matarás! Quem matar será condenado pelo tribunal’. Eu, porém, vos digo: todo aquele que se encoleriza com seu irmão será réu em juízo”(Mt 5,21-22).

O quinto mandamento da Lei de Deus não diz respeito apenas à morte física (Ex 20,13; Dt 5,17), mas também ao ódio que eu posso cultivar dentro de mim. Se eu alimento a ira interiormente eu estou, de alguma forma, matando aquela pessoa dentro de mim. Esse pecado pode não atingir a pessoa que odeio, mas me atinge e me tira da comunhão com o Senhor. Além disso, cultivar o ódio é muito perigoso porque pode me levar a cometer uma ação concreta, pode me levar ao pior de todos os pecados, que é atentar contra a vida do próximo. Falamos e agimos a partir do que temos dentro de nós, a partir do que nosso coração está cheio. Com o ensinamento de Jesus percebemos que esse, e todos os outros pecados, começam dentro do coração humano. Se não tivermos atenção a isso, se não fizermos violência interior[3] contra nossa tendência ao ódio, ao adultério ou fornicação, ao perjúrio, estamos nos colocando em situação de perigo, dando ocasião para o pecado. Claro que não posso afirmar que é a mesma coisa diante de Deus desejar o mal a uma pessoa e tirar a vida dela. Mas existe uma relação entre as duas realidades e se eu não “corto o mal pela raiz”, ele vai me levar a ações maléficas. A justiça mais perfeita de Jesus é esta: seu discípulo precisa combater o pecado desde seu nascimento, naquela realidade interior que a Bíblia chama de coração. Só assim, o cristão poderá permanecer em comunhão com Deus.

Essa interiorização da Lei pode, porém, nos levar a um exagero que alguns setores da Igreja têm caído: confundir sentimento com pecado. Se uma pessoa me bate na cara, nasce em mim o sentimento de raiva e o desejo de vingança – quero bater de volta. Essa é uma tendência natural impossível de ser erradicada. O que Jesus está ensinando não é que não podemos ter estas tendências naturais, mas que não podemos nos deixar levar por elas. Precisamos fazer violência contra essas tendências naturais e agir como discípulos seus. Não é pecado sentir vontade de revidar o mal com o mal, isso é sentimento! Sentimento não é pecado! O pecado acontece se eu me deixar levar por esse sentimento e começar a maquinar a vingança com pensamentos, passar a difamar a pessoa que me fez mal ou fazer algo para prejudicá-la. Sempre que falo sobre isso vejo na cara do interlocutor uma grande surpresa, como se eu tivesse dizendo uma novidade, ou um ensinamento contrário ao da Igreja.

Para nos convencer que a moral da Igreja não dá peso para os sentimentos basta recordar o confesso que às vezes rezamos no ato penitencial:

Confesso a Deus Todo-Poderoso e a vós, irmãos, que pequei muitas vezes por pensamentos e palavras, atos e omissões, por minha culpa, minha tão grande culpa. E peço à Virgem Maria, aos Anjos e Santos, e a vós, irmãos, que rogueis por mim a Deus, Nosso Senhor.

Nunca a Igreja nos ensinou a pedir perdão pelos nossos sentimentos, mas pelos nossos pensamentos, palavras, atos e omissões. O sentimento é uma realidade da nossa vida sobre a qual não temos nenhum controle. O grande problema da nossa sociedade, porém, é dar muito peso para ele e achar que somos determinados pelo que sentimos[4], e não pelo que queremos ou conhecemos. A mesma realidade tem acontecido dentro da Igreja mas de forma inversa: moralizamos os sentimentos e os classificamos de negativos (ódio, indiferença, repulsa etc.) e positivos (amor, afeto, simpatia, etc.). Isso está bem distante do ensinamento de Jesus.

A justiça do cristão não é simples cumprimento de normas exteriores, mas é busca de comunhão com Deus, que começa na interioridade de cada um e se expressa em pensamentos, palavras e ações. Somos amados por Deus e esse amor nos leva a amá-Lo com nossas práticas religiosas e com o amor ao próximo. Lembrando que amor também não é um sentimento mas ação concreta. Este caminho da justiça cristã é um caminho de felicidade e por isso o discurso da montanha começa com as bem-aventuranças.






Pe. Emilio Cesar
Pároco de Messejana





[1] Cf. Mt 5,17, Nota C, Bíblia de Jerusalém.
[2] Eram ensinamentos passados oralmente que pretendiam assegurar a observância da lei escrita, mas iam na verdade mais longe que ela e, às vezes, passavam longe dela. Basta pensar na tradição apresentada em Mt 15,1-9 que invalida o preceito de honrar pai e mãe (cf. Mt 15,2, nota d, Bíblia de Jerusalém).
[3] Este é o sentido das palavras de Jesus: “Se o teu olho direito é para ti ocasião de pecado, arranca-o e joga-o para longe de ti! De fato, é melhor perder um dos teus membros, do que todo o teu corpo ser jogado no inferno” (Mt 5,29)
[4] Basta ver as novelas. Se alguém está apaixonado por outra pessoa, não importa nada mais – se um dos dois já é casado, se existem grandes probabilidades de não dar certo, se pertencem a religiões distintas. O que conta é o sentimento. É como se ele determinasse o ser humano e não existisse nada que lhe fosse superior.

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