Gn 2,7-9; 3,1-7
Rm 5, 12-19
Mt 4,1-11
“Adorarás ao Senhor
teu Deus” (Mt 4,10).
Iniciamos quarta-feira passada a quaresma, tempo de
preparação interior e exterior para futura celebração da Páscoa quando
mergulharemos no mistério da morte e Ressurreição do Senhor.
A preparação para Páscoa, nos três primeiros séculos,
reduzia-se a um jejum realizado nos dois dias anteriores. A comunidade cristã
vivia tão intensamente sua fé, até o testemunho do martírio (era tempo de perseguição),
que não sentia necessidade de um período para renovar a conversão já acontecida
com o batismo. A alegria da celebração pascal, porém, era prolongada por
cinqu
enta dias (Pentecostes).
O Edito de Milão promulgado pelo imperador Constantino no
ano 313[1] pôs fim
à perseguição contra o cristianismo e Teodósio, em 380, tornou o cristianismo a
religião oficial do Estado. Ser cristão começou a se tornar fácil e, pior
ainda, um status. Muitos começaram a se “converter” ao cristianismo com o
objetivo de ganhar os favores dos governantes. A partir de então, começou-se a
sentir necessidade de um período que ajudasse a exortar os féis sobre a
necessidade de uma maior coerência com o batismo[2].
Em vista disso foi que a Quaresma foi ganhando mais dias.
A partir do IV século, a estrutura da Quaresma é aquela dos
quarenta dias, considerados à luz do simbolismo bíblico: quarenta dias que
Jesus passou no deserto jejuando; quarenta anos que o povo passou no deserto
antes de entrar na terra prometida; quarenta dias que Moisés esteve no monte
Sinais antes de receber as tábuas da lei; os quarenta dias que Elias caminhou
para o monte de Deus (Horeb) alimentado apenas pelo pão cozido sob as cinzas e
pela água; os quarenta dias que Jonas pregou a penitência aos habitantes de Nínive[3].
No primeiro domingo da quaresma ouvimos sempre a narrativa
da tentação de Jesus no deserto que é apresentada pela liturgia de hoje como
antítese, ou antídoto, ao primeiro pecado do homem (1a leitura). De
um lado um jardim preparado por Deus para o homem, cheio de árvores, frutas,
animais, água, vida e prazer; do outro um lugar deserto. Ali, um homem foi
colocado à prova em sua liberdade, escutou as sugestões do mal e disse não a
Deus; aqui outro homem foi provado por Satanás mas resistiu e disse sim a Deus.
Contemplemos, então, a primeira parte da antítese, o veneno do mal.
Deus criou o homem e a mulher, “plantou” um jardim para eles
e todas as tardes os encontrava (cf. Gn 3,8). Estavam em comunhão com o Senhor,
entre si e com a natureza. Desfrutavam de uma felicidade incomensurável. Tudo
lhes era permitido menos comer do fruto da árvore da ciência do bem e do mal! É
neste momento que aparece a “serpente” e começa um diálogo com a mulher
lançando uma mentira: é verdade que Deus proibiu vocês comerem de todos os
frutos do jardim? (cf. Gn 3,1); Eva responde: só não podemos comer do fruto da
ciência do bem e do mal porque se não morreremos (cf. Gn 3,2-3); o Tentador, então,
lança a dúvida e a desconfiança: não morrereis, mas Deus sabe que no dia em que
dele comerdes sereis como Ele, conhecedores do bem e do mal (cf. Gn 3,4-5). É
interessante perceber que o texto faz questão de salientar que antes do ato de
“comer” o fruto a mulher viu que ele era desejável e atraente. Ou seja, o ato
foi concebido interiormente antes de se exteriorizar em ação. Este ato nós
chamamos de pecado porque quebrou a comunhão que o homem e a mulher tinham com
seu Criador, entre si e com a natureza, e trouxe consequências negativas
impensáveis: trabalhos penosos, dores alucinantes, mortes prematuras,
assassinatos, dilúvios... Como se pode perceber, o pecado original não é o
sexo, nem comer uma maçã, mas dizer por si só, independentemente de seu Criador,
o que é certo e o que é errado. Fazer-se deus sem Deus.
Agora passemos para o antídoto do veneno do mal.
No evangelho Jesus também é tentado: “Se és o Filho de Deus,
manda que estas pedras se transformem em pães!”; “Se és o Filho de Deus,
lança-te daqui abaixo!”; “Eu te darei tudo isso [os reinos do mundo e sua
glória], se te ajoelhares diante de mim, para me adorar”[4].
Todas as tentações têm o objetivo muito simples: afastar Jesus de seu caminho,
da comunhão que ele tinha com o Pai. Ao contrário de Adão, Jesus vence as
tentações, permanece unido ao seu Pai e com isso pode iniciar seu ministério.
Como vencer as sugestões do mal? Como dizer não ao pecado e
sim a Deus?
A resposta ainda é encontrada no evangelho. Em primeiro
lugar, é preciso estar cheio do Espírito Santo, como Jesus estava (cf. Mt 4,1).
Ninguém vence o mal sozinho, e muito menos sem a força de Deus. É preciso pedir
que o Espírito que recebemos no batismo e crisma seja sempre atuante em nós.
Depois precisamos nos retirar a lugares desertos para orarmos, mesmo quando
isso não for prazeroso (cf. Mt 4,1-2). Muitas pessoas vêm confessar e dizem que
não estão mais sentido a presença de Deus e acham que isso é pecado. Não, isso
pode ser o primeiro passo de uma oração mais profunda quando não rezamos mais
para nos sentir bem mas para estar em comunhão com Deus. A oração, em alguns
momentos, especialmente no início, pode ser prazerosa mas com o passar do tempo
ela se transforma numa luta, ou num deserto. O importante é que nesses momentos
não desistamos, ou fujamos da oração espontânea com devoções duvidosas só para
nos sentirmos bem.
O que pode nos conduzir nesses momentos de deserto é o mesmo
que conduziu Jesus: a Palavra de Deus. Se olharmos para as respostas que ele
deu ao tentador todas eram introduzidas pela expressão “está escrito” e
seguidas de uma citação bíblica: “Não só de pão vive o homem, mas de toda
palavra que sai da boca de Deus”; “Não tentarás o Senhor teu Deus!”; “Adorarás
ao Senhor, teu Deus, e somente a ele prestarás culto”. Para vencermos o veneno
do mal precisamos conhecer a Escritura. Não é um conhecimento somente
intelectual ou desassociado da vida e da Igreja.
Conhecer a Escritura significa ouvir a Palavra com a minha
comunidade de fé, partilhar meu entendimento com os irmãos, ouvir do padre
aquilo que a Igreja ensina, guardar no meu coração tudo isso para tentar
praticar na minha família, trabalho, lazer e na própria comunidade cristã. É
claro que a primazia dessa escuta comunitária não substitui a necessidade de eu
cultivar uma leitura pessoal e oracional com a Sagrada Escritura, a lectio divina.
O antídoto do mal, então, é a busca da comunhão com Deus que
se dá pela escuta da Palavra e pela oração. Na quaresma a Igreja nos pede jejum
e abstinência na quarta-feira de cinzas e na sexta-feira santa, mas nos convida
que façamos uso dessa prática em outros dias desse tempo. Utilizemos então os
momentos que não faremos as refeições para nos dedicar mais à oração e leitura
da Escritura.
Pe. Emilio Cesar
Pároco de Messejana
[1] http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%89dito_de_Mil%C3%A3o,
consulta realizada no dia 24 de março de 2011 às 10:30.
[2]
Cf. Bergamini, A., Cristo, Festa da Igreja. O ano litúrgico.
3ª ed., São Paulo: Paulinas 2004, p. 265.
[3]
Cf. Bergamini, A., Cristo, Festa da Igreja. O ano litúrgico.
3ª ed., São Paulo: Paulinas 2004, p. 265ss.
[4] Fico
impressionado como o convite de algumas denominações cristãs é parecido com a
terceira tentação de Jesus: “se ‘você aceitar Jesus’ [na nossa Igreja] vai
acabar seu problema financeiros, suas contas vão ser quitadas e você vai ficar
muito rico”. Quantos católicos
caem nesta tentação!
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