“Escutai-o” (Mt 17,5).
O segundo domingo da quaresma tem sempre como evangelho a narrativa da transfiguração, como se a Igreja quisesse nos lembrar que a quaresma tem como finalidade a páscoa, antecipada para os 3 apóstolos na transfiguração; ou ainda, que todo deserto quaresmal em vista da conversão (evangelho do I domingo) tem por fim a nossa transfiguração, viver como ressuscitados.
A passagem do Tabor é antecedida por dois momentos
importantes: Jesus anuncia a sua paixão e ressurreição que acontecerá em
Jerusalém (cf. Mt 16,21) e fala abertamente que seus discípulos autênticos
precisam escolher o mesmo caminho (cf. Mt 16,24-26). Para quem esperava um
reino messiânico político isso é um grande escândalo, tanto é que Pedro
repreendeu o Mestre (cf. Mt 16,22-23). Depois destas duas revelações os
discípulos devem ter ficado muito abalados, sob o peso da paixão que se
aproximava. Ao narrar a transfiguração parece que o autor quer ensinar que o
sofrimento que se aproxima é passagem necessária para a alegria da
ressurreição. Como reza o prefácio de hoje:
Tendo predito aos discípulos a
própria morte, Jesus lhes mostra, na montanha sagrada, todo o seu esplendor. E
com o testemunho da Lei e dos Profetas, simbolizados em Moisés e Elias, nos
ensina que, pela paixão e cruz, chegará à glória da ressurreição[1].
Ao subir a montanha com três de seus discípulos, Jesus
pretendia se dedicar à oração. É no momento de intimidade com o Pai que ele “é transfigurado”,
Deus mostra que aquele mestre é mais que um homem. Uma passagem do evangelho de
João nos ajuda a compreender o mistério experimentado pelos três: “nós vimos a
sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como Filho único” (Jo 1,14).
Quando Pedro, João e Tiago viram a glória de Jesus sentiram
uma paz inefável, uma certeza inabalável, e quiseram permanecer nesta situação:
“Senhor, é bom ficarmos aqui” (Mt 17, 4). Toda a tristeza, incompreensão,
espanto, desânimo e cansaço que tinham assolado o coração daqueles homens
desapareceram. Segundo Pe. Raniero Cantalamessa, esta é uma experiência que
cedo ou tarde cada homem e mulher faz na sua vida. Chega um momento da
existência de uma pessoa, ou de uma família, que se estabelece certa calma, ou
mesmo felicidade. As dificuldades desaparecem, a oração consola, o trabalho
realiza, os filhos alegram, a vida se apresenta bela e o futuro melhor ainda.
Parece que cada coisa está no seu lugar e faz sentido. É um verdadeiro Tabor[2].
Deus concede que algumas pessoas vivam muitos anos nesta
situação de bem-aventurança, mas a maioria de nós experimenta isso por pouco
tempo. Logo após um breve momento de transfiguração, permanece-se só e se ouve:
“Levantai-vos, e não tenhais medo” (Mt 17,7). Tudo parece ter voltado como
antes, reapareceram as dúvidas, os contratempos, o peso da paixão iminente... é
preciso retornar à planície junto com os outros discípulos e continuar o
difícil caminho para Jerusalém. Mas o interior de cada um daqueles apóstolos estava
marcado pela experiência que tiveram e, especialmente, pela voz que ouviram:
“Este é o meu Filho amado... escutai-o” (Mt 17,5). Assinalados pela experiência
do Tabor que revelou a verdadeira identidade de Jesus, agora eles estão mais
preparados para continuar o caminho que levará a paixão, ao grande êxodo. Neste
caminho a Palavra de Jesus será a principal ou única luz e condução. Não haverá
mais o esplendor do monte, a paz inefável, a voz forte, apenas a palavra do
Mestre e Senhor.
É neste ponto que entendemos porque a Igreja colocou como
primeira leitura a vocação de Abraão. Descer o Tabor e voltar à vida normal é
semelhante ao chamado daquele pastor da Caldeia que foi convocado por Deus para
fazer o primeiro grande êxodo narrado na Bíblia: “Sai da tua terra, da tua família
e da casa do teu pai, e vai para a terra que eu vou te mostrar” (Gn 12,1). Em
outras palavras Deus disse: deixa tuas seguranças, teu conforto, teus projetos
futuros... e vai rumo ao desconhecido para que eu faça de ti um grande povo e
uma bênção para todas as famílias da terra (cf. Gn 12,2-3). Diz o texto:
“Abraão partiu, como o Senhor lhe havia dito” (Gn 12,4a). Este momento da vida
do patriarca é a expressão plástica da fé. Deus o chamou, ele respondeu sim
confiando e seguindo Sua palavra, mesmo sem saber o que lhe esperava, mesmo sem
garantias. É por este motivo que Abraão é considerado o pai da fé não apenas
para os judeus mas também para os cristãos.
O cristão faz seu grande êxodo no dia do batismo. Ele aceita
morrer com Cristo para viver com ele, é uma ato de confiança total e radical.
Como a maioria de nós vivenciou o batismo na infância, ou ainda não mergulhou
de cabeça neste mistério, a Igreja nos oferece a quaresma para repetir e fazer
nossa esta experiência, tão forte como a saída de Abraão de Ur, como a descida
de Pedro, Tiago e João do monte para retomar a estrada de Jerusalém. A fé
batismal a qual somos chamados é uma confiança absoluta em Deus e na sua
Palavra, para nos deixar conduzir em meio às dificuldades da vida (desavenças
familiares, traição da pessoa que amamos, doença de uma pessoa querida,
problemas no trabalho). Nestes momentos precisamos ser conduzidos pela Palavra
do Senhor, principal alimento para nossa fé. E a fé batismal, por sua vez,
precisa ser traduzida em atos concretos, em caridade, em construção do Reino de
Deus; assim como aconteceu com Abraão que deixou sua terra e foi em busca da
promessa de Deus. É por esse motivo que a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil propõe em todas as quaresmas uma Campanha da Fraternidade. Uma realidade
social que precisa ser iluminada pelo evangelho para que o Reino seja
construído. E como Deus se utiliza de seus filhos para agir no mundo, esta é
uma das maneiras que podemos traduzir nossa fé em caridade. Você também pode
perceber outra maneira que Jesus lhe chama a conversão: cuidar de um doente que
tem na sua casa, ter mais paciência com seus familiares idosos, se engajar mais
na vida da Igreja, se dedicar mais a leitura bíblica...
No silêncio escute a voz de Jesus e o chamado de Deus
dirigido para você nesta quaresma.
Pe. Emilio Cesar
Pároco de Messejana
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