sábado, 15 de março de 2014

II DOMINGO DA QUARESMA ANO A



“Escutai-o” (Mt 17,5).

O segundo domingo da quaresma tem sempre como evangelho a narrativa da transfiguração, como se a Igreja quisesse nos lembrar que a quaresma tem como finalidade a páscoa, antecipada para os 3 apóstolos na transfiguração; ou ainda, que todo deserto quaresmal em vista da conversão (evangelho do I domingo) tem por fim a nossa transfiguração, viver como ressuscitados.
A passagem do Tabor é antecedida por dois momentos importantes: Jesus anuncia a sua paixão e ressurreição que acontecerá em Jerusalém (cf. Mt 16,21) e fala abertamente que seus discípulos autênticos precisam escolher o mesmo caminho (cf. Mt 16,24-26). Para quem esperava um reino messiânico político isso é um grande escândalo, tanto é que Pedro repreendeu o Mestre (cf. Mt 16,22-23). Depois destas duas revelações os discípulos devem ter ficado muito abalados, sob o peso da paixão que se aproximava. Ao narrar a transfiguração parece que o autor quer ensinar que o sofrimento que se aproxima é passagem necessária para a alegria da ressurreição. Como reza o prefácio de hoje:
Tendo predito aos discípulos a própria morte, Jesus lhes mostra, na montanha sagrada, todo o seu esplendor. E com o testemunho da Lei e dos Profetas, simbolizados em Moisés e Elias, nos ensina que, pela paixão e cruz, chegará à glória da ressurreição[1].
Ao subir a montanha com três de seus discípulos, Jesus pretendia se dedicar à oração. É no momento de intimidade com o Pai que ele “é transfigurado”, Deus mostra que aquele mestre é mais que um homem. Uma passagem do evangelho de João nos ajuda a compreender o mistério experimentado pelos três: “nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como Filho único” (Jo 1,14).
Quando Pedro, João e Tiago viram a glória de Jesus sentiram uma paz inefável, uma certeza inabalável, e quiseram permanecer nesta situação: “Senhor, é bom ficarmos aqui” (Mt 17, 4). Toda a tristeza, incompreensão, espanto, desânimo e cansaço que tinham assolado o coração daqueles homens desapareceram. Segundo Pe. Raniero Cantalamessa, esta é uma experiência que cedo ou tarde cada homem e mulher faz na sua vida. Chega um momento da existência de uma pessoa, ou de uma família, que se estabelece certa calma, ou mesmo felicidade. As dificuldades desaparecem, a oração consola, o trabalho realiza, os filhos alegram, a vida se apresenta bela e o futuro melhor ainda. Parece que cada coisa está no seu lugar e faz sentido. É um verdadeiro Tabor[2].
Deus concede que algumas pessoas vivam muitos anos nesta situação de bem-aventurança, mas a maioria de nós experimenta isso por pouco tempo. Logo após um breve momento de transfiguração, permanece-se só e se ouve: “Levantai-vos, e não tenhais medo” (Mt 17,7). Tudo parece ter voltado como antes, reapareceram as dúvidas, os contratempos, o peso da paixão iminente... é preciso retornar à planície junto com os outros discípulos e continuar o difícil caminho para Jerusalém. Mas o interior de cada um daqueles apóstolos estava marcado pela experiência que tiveram e, especialmente, pela voz que ouviram: “Este é o meu Filho amado... escutai-o” (Mt 17,5). Assinalados pela experiência do Tabor que revelou a verdadeira identidade de Jesus, agora eles estão mais preparados para continuar o caminho que levará a paixão, ao grande êxodo. Neste caminho a Palavra de Jesus será a principal ou única luz e condução. Não haverá mais o esplendor do monte, a paz inefável, a voz forte, apenas a palavra do Mestre e Senhor.
É neste ponto que entendemos porque a Igreja colocou como primeira leitura a vocação de Abraão. Descer o Tabor e voltar à vida normal é semelhante ao chamado daquele pastor da Caldeia que foi convocado por Deus para fazer o primeiro grande êxodo narrado na Bíblia: “Sai da tua terra, da tua família e da casa do teu pai, e vai para a terra que eu vou te mostrar” (Gn 12,1). Em outras palavras Deus disse: deixa tuas seguranças, teu conforto, teus projetos futuros... e vai rumo ao desconhecido para que eu faça de ti um grande povo e uma bênção para todas as famílias da terra (cf. Gn 12,2-3). Diz o texto: “Abraão partiu, como o Senhor lhe havia dito” (Gn 12,4a). Este momento da vida do patriarca é a expressão plástica da fé. Deus o chamou, ele respondeu sim confiando e seguindo Sua palavra, mesmo sem saber o que lhe esperava, mesmo sem garantias. É por este motivo que Abraão é considerado o pai da fé não apenas para os judeus mas também para os cristãos.
O cristão faz seu grande êxodo no dia do batismo. Ele aceita morrer com Cristo para viver com ele, é uma ato de confiança total e radical. Como a maioria de nós vivenciou o batismo na infância, ou ainda não mergulhou de cabeça neste mistério, a Igreja nos oferece a quaresma para repetir e fazer nossa esta experiência, tão forte como a saída de Abraão de Ur, como a descida de Pedro, Tiago e João do monte para retomar a estrada de Jerusalém. A fé batismal a qual somos chamados é uma confiança absoluta em Deus e na sua Palavra, para nos deixar conduzir em meio às dificuldades da vida (desavenças familiares, traição da pessoa que amamos, doença de uma pessoa querida, problemas no trabalho). Nestes momentos precisamos ser conduzidos pela Palavra do Senhor, principal alimento para nossa fé. E a fé batismal, por sua vez, precisa ser traduzida em atos concretos, em caridade, em construção do Reino de Deus; assim como aconteceu com Abraão que deixou sua terra e foi em busca da promessa de Deus. É por esse motivo que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil propõe em todas as quaresmas uma Campanha da Fraternidade. Uma realidade social que precisa ser iluminada pelo evangelho para que o Reino seja construído. E como Deus se utiliza de seus filhos para agir no mundo, esta é uma das maneiras que podemos traduzir nossa fé em caridade. Você também pode perceber outra maneira que Jesus lhe chama a conversão: cuidar de um doente que tem na sua casa, ter mais paciência com seus familiares idosos, se engajar mais na vida da Igreja, se dedicar mais a leitura bíblica...
No silêncio escute a voz de Jesus e o chamado de Deus dirigido para você nesta quaresma.

Pe. Emilio Cesar
Pároco de Messejana




[1] Prefácio do II domingo da quaresma.
[2] Cf. Raniero Cantalamessa, La Parola e la vita. Riflessioni sulla Parola di Dio delle Domeniche e delle feste dell’anno A. 12a Ed., Roma: Città Nuova 2004, p. 67-68.

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