Palestra proferida durante o
Simpósio
Arquidiocesano no ano da esperança
Fortaleza, 20 de setembro de 2014
A primeira palestra desse simpósio é sobre a “Esperança na
Bíblia”. Gostaria de convidá-los a fazer uma viagem ao Antigo Testamento (AT),
depois às cartas paulinas, passando rapidamente pelos evangelhos. Nosso passeio
nos levará à seguinte consideração final: nossa espiritualidade e nossa ação
social estão de acordo com a esperança cristã?
Antes de iniciar a viagem, gostaria de apresentar dois
autores que irão nos motivar e orientar nossa viagem. Poderíamos dizer que um é
o guia turístico e o outro o maquinista.
Nosso guia e motivador é Charles Péguy. Ele cantou a beleza
e a importância da esperança na sua obra O
Pórtico do mistério da segunda virtude. Ouçamos com atenção duas passagens:
Demasiado se esquece, minha filha, que a esperança é
uma virtude, que é uma virtude teologal, e que de todas as virtudes, e das três
virtudes teologais, é ela talvez a mais agradável a Deus.
Que ela é seguramente a mais difícil, que é talvez a única difícil, e
que decerto é ela a mais agradável a Deus[1].
O mais interessante é saber que Peguy escreveu tudo isso num
período de profundo desespero (1910-1911): solidão crescente, indiferença dos
católicos[2],
distanciamento de alguns amigos socialistas, a dor viva da situação conjugal e
sacramental não resolvida[3].
Nosso maquinista é o papa emérito Bento XVI com sua
encíclica Spe salvi (“É na esperança
que fomos salvos” (Rm 8,24)). Ele nos ensinou que a redenção não é um simples
dado de fato, mas algo concedido como esperança, graças à qual podemos
enfrentar o presente tão custoso. De que gênero é tal esperança? E de que tipo
de certeza se trata?
Fé e esperança são palavras intercambiáveis em algumas
passagens bíblicas (cf. Hb 1,22 e 23; 1Pd 3,15; Ef 2,12; 1Ts 4,13). O
cristianismo não é apenas uma comunicação de conteúdos até agora ignorados
(informativo), mas uma comunicação que gera fatos e muda a vida (performativo).
Quem tem esperança vive diversamente[4].
Por isso é tão importante falar sobre essa virtude.
Iniciemos, agora, nossa viagem pelo Antigo Testamento.
A esperança no Antigo Testamento
Falar de esperança é mostrar a importância do futuro na vida
religiosa do povo de Deus.
A história da esperança começa com a promessa que Deus fez a
Abraão:
1Iahweh disse a Abrão: "Sai
da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que te mostrarei. 2Eu farei de ti um grande povo, eu te abençoarei, engrandecerei teu
nome; sê uma bênção! 3Abençoarei os que te abençoarem, amaldiçoarei
os que te amaldiçoarem. Por ti serão benditos todos os clãs da terra." (Gn
12,1-3)[5].
O fundamento de tudo é a revelação de Deus. Ele se mostra a
Abraão, fala com ele e lhe promete uma terra e uma descendência. Sem a
manifestação divina não haveria promessa nem fé. Sem ambas, nosso patriarca não
teria esperança.
Na ansiedade de ver a promessa da descendência cumprida,
Sarai oferece Agar para Abraão deitar-se e ter um filho (cf. Gn 16,1ss). O filho
gerado, porém, não é o fruto da promessa divina, mas da iniciativa humana. É Sara
que lhe dará o filho prometido pelo Senhor:
15Deus disse a Abraão: "A tua
mulher Sarai, não mais a chamarás de Sarai, mas seu nome é Sara. 16Eu
a abençoarei, e dela te darei um filho; eu a abençoarei, ela se tornará nações,
e dela sairão reis de povos." 17Abraão caiu com o rosto por
terra e se pôs a rir, pois dizia a si mesmo: "Acaso nascerá um filho a um
homem de cem anos, e Sara que tem noventa anos dará ainda à luz?" 18Abraão
disse a Deus: "Oh! Que Ismael viva diante de ti!" 19Mas
Deus respondeu: "Não, mas tua mulher
Sara te dará um filho: tu o chamarás Isaac; estabelecerei minha aliança com ele,
como uma aliança perpétua, para ser seu Deus e o de sua raça depois dele. 20Em
favor de Ismael também, eu te ouvi: eu o abençoo, o tornarei fecundo, o farei
crescer extremamente; gerará doze príncipes e dele farei uma grande nação. 21Mas
minha aliança eu a estabelecerei com Isaac, que Sara dará à luz no próximo ano,
nesta estação." 22Quando terminou de falar, Deus retirou-se de
junto de Abraão (Gn 17,15-22).
O Senhor resolve colocar Abraão à prova pedindo-lhe o filho
da promessa:
1Depois
desses acontecimentos, sucedeu que Deus pôs Abraão à prova e lhe disse:
"Abraão! Abraão!" Ele respondeu: "Eis-me aqui!" 2Deus
disse: "Toma teu filho, teu único, que amas, Isaac, e vai à terra de
Moriá, e lá o oferecerás em holocausto sobre uma montanha que eu te indicarei"
(Gn 22,1-2).
Sabemos como termina a história. Ele foi aprovado na fé e na
esperança depositadas em Deus mais que nas Suas promessas. Pode-se afirmar que
tal fidelidade anunciava uma esperança melhor (Hb 7,19), à qual Deus estava
conduzindo seu povo.
Uma terra (Ex 4,8.17) e uma descendência (Gn 49; Ex
23,27-33; Lv 26,3-13; Dt 28). Durante séculos, estes serão o objeto da
esperança de Israel, ou seja uma esperança terrestre[6].
O que aconteceu com o patriarca em relação a apressar o
cumprimento da promessa também ocorreu com o povo. Israel, muitas vezes,
esqueceu que um futuro feliz era um dom do Deus da aliança (Os 2,10; Ez
16,15ss) e tentou conquistá-lo com suas próprias forças, como faziam as outras
nações, através da idolatria, do culto formalista, das alianças com poderosos.
Os profetas denunciam essa esperança ilusória (Jr 8,15; 13,16). Quando o futuro
parece fechar-se (cf. Ez 37,11), surge o anúncio de que um resto será salvo
(cf. Is 10,19-23). A salvação pode tardar, mas ela é certa, porque o Senhor,
fiel e misericordioso, é a esperança de Israel (Jr 17,13)[7]:
O que restar das árvores da sua floresta constituirá
um número insignificante: até um menino poderá contá-las. Naquele dia, o resto de Israel, os sobreviventes da
casa de Jacó não continuarão a apoiar-se sobre aquele que os fere; apoiar-se-ão sobre Iahweh, o Santo de
Israel, com fidelidade. Um resto, o resto de Jacó, voltará ao Deus forte. Com
efeito, ó Israel, ainda que o teu povo seja como a areia do mar, só um resto
dele voltará, pois a destruição está decidida: a justiça transborda! Sim, a
destruição está decidida; o Senhor Iahweh dos Exércitos a fará executar no meio
de toda a terra (Is 10,19-23).
A concepção profética do futuro é muito complexa, mas
pode-se simplificá-la dizendo que a esperança de Israel e das nações é o
próprio Deus (Is 51,5; 60,19s) e o Seu reino (Sl 96-99). Ainda estamos diante
de um esperança terrena e coletiva.
Em Jó, o sofrimento do justo (Jó 15,15; 19,25ss; 42,1-6)
colocou um grande problema para a esperança terrena e coletiva. Como
compreender o sofrimento de uma pessoa que é fiel a Deus? Onde estaria a
esperança para ela? Uma corrente encarou o sofrimento do justo como redentor
(Is 53); por isso deveria provocar esperança e não impedi-la. Essa reflexão não
teve continuidade no AT. A esperança de Jó, por exemplo, desemboca na noite
(cf. Jó 42,1-6)[8].
A última etapa da nossa visita ao AT é contemplar os livros
que mais se aproximam da visão da esperança no Novo Testamento.
Em Daniel, a fé dos mártires gera a esperança individual da
ressurreição (Dn 12,1ss; 2Mc 7), enquanto a esperança coletiva se volta para o
Filho do homem (Dn 7). Já a esperança dos sábios é direcionada para uma paz (Sb
3,3), um repouso (Sb 4,7), uma salvação (Sb 5,2) que não estão mais neste mundo,
mas na imortalidade (Sb 3,4), junto do Senhor (Sb 5,1s). É assim que esperança se torna pessoal (Sb 5,5) e se orienta para o
mundo futuro[9]:
1A vida dos justos está nas mãos
de Deus, nenhum tormento os atingirá. 2Aos olhos dos insensatos
pareceram morrer; sua partida foi tida como uma desgraça, 3sua
viagem para longe de nós como um aniquilamento, mas eles estão em paz. 4Aos
olhos humanos pareciam cumprir uma pena, mas sua esperança estava cheia de imortalidade; 5por um
pequeno castigo receberão grandes favores. Deus os colocou à prova e os achou
dignos de si. 6Examinou-os como o ouro no crisol e aceitou-os como
perfeito holocausto (Sb 3,1-6).
A esperança no Novo Testamento
Nos
evangelhos[10]
Jesus proclama a vinda do Reino de Deus sobre esse mundo (Mt
4,17), mas segundo uma realidade espiritual que só se chega pela fé. Para se
ver a realização da promessa de Israel, é preciso renunciar a todo aspecto
material da sua espera (Mt 16,24ss). Por outro lado, o Reino é ainda futuro. A
esperança continua, mas direcionada para a vida eterna (Mt 18,8s), para a parusia (Mt 16,27; 25,31-46).
Enquanto aguarda esse dia, a Igreja tem que completar a
realização da esperança dos profetas abrindo para as nações o Reino e sua
esperança (Mt 8,11s; 28,19).
No
corpo de cartas atribuídas a Paulo[11]
A esperança cristã é a realização das promessas de Deus a
Israel. Ela está fundamentada na história de Israel e na revelação de que Deus
cumpre suas promessas em Cristo. Vemos isso em Rm 4, quando Paulo escreve sobre
a fé e a esperança de Abraão.
18Ele, esperando contra toda a esperança, creu e tornou-se assim pai de muitos povos, conforme lhe
fora dito: Tal será tua descendência.
19E foi sem vacilar na fé que considerou seu corpo já morto — ele
tinha cerca de cem anos — e o seio de Sara também morto. 20Ante a promessa de Deus, ele não se deixou abalar pela
desconfiança, mas se fortaleceu na
fé, dando glória a Deus, 21convencido de que ele podia cumprir o que prometeu. 22Eis porque isto lhe foi levado em conta de justiça.
23Não foi escrito só para ele: — Foi-lhe levado em conta — 24mas também para nós. Para
nós que cremos naquele que ressuscitou dos mortos, Jesus, nosso Senhor, 25o
qual foi entregue pelas nossas faltas
e ressuscitado para a nossa justificação (Rm 4,18-25).
Abraão nunca duvidou que o Senhor cumpriria suas promessas.
Sua esperança fundamentava-se em um relacionamento pessoal com o Deus no qual
ele depositou sua fé. Esta era a única base de sua esperança, porque sua
realidade histórica o encaminhava a desconfiar da possibilidade de ter uma
descendência. Apesar da impossibilidade humana, Abraão “esperou contra toda
esperança”.
A esperança cristã dirige-se ao mesmo Deus que cumpriu as
promessas a Abraão e que ressuscitou Jesus dos mortos. O que Deus faz em Cristo
dá uma razão muito maior que a de Abraão para ter esperança. Cristo é o
cumprimento fiel da promessa de Deus a Abraão; agora até os gentios são
justificados, ou seja, até os gentios são filhos de Abraão. A ressurreição de
Cristo é o início de um novo tempo de esperança, determinada pelas promessas
divinas em Cristo e fortalecida pelo dom do Espírito. Por isso, nossa esperança
não se fundamenta mais na promessa feita a Abraão ou a indivíduos em revelações
particulares, mas em Cristo.
Os cristãos vivem entre a ressurreição do Senhor e a
realização definitiva do Reino de Deus. Vivem na esperança porque as promessas
divinas muitas vezes estão em contradição com a realidade que os cercam. Para
lhes dar esperança, eles têm a fidelidade de Deus em Cristo (passado), as
promessas (futuro) e o dom do Espírito Santo (presente).
Aprofundemos isso com outra passagem da carta aos Romanos:
1Tendo sido, pois, justificados
pela fé, estamos em paz com Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, 2por
quem tivemos acesso, pela fé, a esta graça, na qual estamos firmes e nos
gloriamos na esperança da glória de
Deus. 3E não é só. Nós nos gloriamos também nas tribulações, sabendo
que a tribulação produz a perseverança, 4a perseverança uma virtude
comprovada, a virtude comprovada a esperança.
5E a esperança não
decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo
Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5,1-5).
A mesma ideia se repete: a esperança é força para os fiéis
porque se fundamenta no que Deus fez em Cristo (passado), é experimentada no
poder do Espírito de amor (presente) e se move em direção à glória que será
revelada (futuro).
Em Rm 8 fica mais claro que a esperança é inseparável do dom
do Espírito e da vida nova que os cristãos receberam. O Espírito assegura aos fiéis
que são co-herdeiros com Cristo. Tal dom é sinal de que Jesus já recebeu sua
herança e garantia de que as expectativas dos que ainda aguardam se realizarão.
A atividade do Espírito é prova de que surgiu um novo tempo e sua consumação
não tardará. Rm 8,28-30 mostra que nada pode destruir a glória suprema dos
cristãos, essa é a base da esperança cristã em meio a um mundo hostil (cf. Rm
8,38-39). A hostilidade que os cristãos encontram no mundo é sinal de sua
fidelidade a Jesus e garantia de que suas expectativas se realizarão.
A fé e a esperança têm um lugar junto ao amor (1Cor 13,13)
no exercício dos dons espirituais, porque essas virtudes abrangem toda a
existência cristã. A vida no Espírito é uma vida de fé em Deus, de confiança no
futuro e de amor uns aos outros.
A glória futura, que os fiéis sabem que vão receber, exerce
influência no presente por meio da esperança que suscita:
3Damos graças ao Deus e Pai de
nosso Senhor Jesus Cristo, sempre orando por vós, 4depois que
ouvimos acerca da vossa fé em Cristo
Jesus e do amor que tendes a todos os
santos, 5pela[12]
esperança que vos está reservada nos
céus. Dela já ouvistes o anúncio da Palavra da Verdade, o evangelho, 6que
chegou até vós, e que em todo o mundo está produzindo frutos e crescendo, como
também entre vós, desde o dia em que ouvistes e compreendestes em sua verdade a
graça de Deus (Col 1,3-6).
Os cristãos anteveem o
futuro e trazem-no para o presente com sua fé e seu amor (cf. Cl 1,4-5). Esse
futuro é a consumação da atividade que começou na morte e ressurreição de
Cristo e continua na experiência presente do Espírito (cf. Cl 1,7). O objetivo
da esperança cristã é a futura manifestação do Senhor (Tt 2,13).
A vida eterna (Tt 1,2; 3,7) e a ressurreição dos mortos (1Ts
4,13-18; 1Cor15) estão estreitamente ligadas à manifestação da glória. 1 Cor 15
apresenta uma análise mais extensa dessas realidades futuras. Apesar da palavra
esperança aparecer apenas uma vez (1Cor 15,19), esta perícope liga-se a Rm 8
pelo uso da imagem das primícias: assim como a obra do Espírito na vida dos fiéis
são as primícias da glória futura, a ressurreição de Cristo é as primícias que garante a ressurreição
futura de todos os que estão em Cristo. Negar essa ressurreição seria negar o
Deus que prometeu esse futuro glorioso.
A esperança cristã só encontra sentido como antecipação de algo maior e
mais glorioso. Ela parte da realidade presente da atividade de Deus ao
ressuscitar Cristo dos mortos e dar o Espírito aos fiéis, e proclama o futuro
dessa realidade. A esperança é um incentivo para os fiéis em meio ao
sofrimento, mas também os impede de se contentar com as circunstâncias atuais.
A esperança insiste que os cristãos aguardem ansiosamente o grande dia em que
todas as promessas de Deus serão cumpridas[13].
Considerações finais
Chegamos à parada final. A partir do que visitamos, o que
poderíamos dizer sobre dois aspectos tão importantes da nossa vida cristã e
eclesial: a vida espiritual e o compromisso social? Já que a Boa Nova não é
apenas informativa, mas também performativa, o que poderíamos indicar como
necessária mudança a partir do anúncio da esperança cristã?
Vida
espiritual
Não é difícil encontrar pessoas espirituais que ouvem
promessas da parte de Deus (emprego, pessoas certa para se casar, filho etc.) e
ficam esperando passivamente por seu cumprimento. Em alguns momentos entram em
crise, porque nunca veem o cumprimento, depois lembram de Abraão e voltam à
serenidade. Essa é realmente uma promessa divina na qual somos convidados a ter
uma esperança cristã?
O Catecismo da Igreja Católica (n. 65), ao tratar da
revelação, nos diz que Jesus é a plenitude da revelação de Deus e não se deve
esperar nem pedir outra revelação ou promessas (acréscimo nosso). O documento
cita uma passagem de S. João da Cruz, fazendo-a própria:
«Ao dar-nos, como nos deu, o seu
Filho, que é a sua Palavra – e não tem outra – (Deus) disse-nos tudo ao mesmo
tempo e de uma só vez nesta Palavra única e já nada mais tem para dizer. [...]
Porque o que antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente,
dando-nos o Todo que é o seu Filho. E, por isso, quem agora quisesse consultar
a Deus ou pedir-Lhe alguma visão ou revelação, não só cometeria um disparate,
mas faria agravo a Deus, por não pôr os olhos totalmente em Cristo e buscar
fora d'Ele outra realidade ou novidade»[14].
Ouvindo S. João e o ensinamento doutrinal da Igreja, podemos
dizer que aqueles que ainda vão em busca de promessas particulares estão se
colocando no Antigo Testamento, ao lado de Abraão, e esqueceram que Jesus já
revelou tudo o que tinha para ser revelado: sua pessoa, o amor do Pai dado até
as últimas consequências. Essas pessoas vivem como se Jesus não fosse a última
Palavra de Deus e ainda buscassem palavras divinas para si, para se apegarem.
Muitas vezes abrem aleatoriamente a Bíblia[15]
esperando que Deus lhes fale imediatamente se devem ou não fazer isso, se
aquela pessoa é sua metade, se o Senhor quer que ela estude essa ou aquela
faculdade... Acredito que tais pessoas estão caindo no erro que João da Cruz
fala nessa passagem: quem agora quiser consultar a Deus ou pedir-Lhe alguma
visão ou revelação cometeria um grande erro (disparate) e estaria cometendo um pecado (faria agravo a Deus). Estão voltando ao tempo do Antigo Testamento,
quando as promessas ainda não tinham se cumprido em Jesus.
A vida espiritual cristã não é alimentada dessas falsas
promessas, mas daquelas feitas por Deus através de Jesus. O conteúdo das
promessas divinas está na Palavra de Deus, especialmente no Novo Testamento. É
preciso conhecê-Lo através de um estudo adequado, profundo e movido pela fé
católica. É preciso ler não palavras aleatórias, abertas ao acaso para saber a
resposta imediata do Senhor, quase como se fosse um oráculo (ou seria uma
adivinhação?). Mas ler cada livro da Sagrada Escritura, a partir do Novo
Testamento, usando a inteligência e a fé para entender o que Deus revelou em
Jesus, quais suas verdadeiras promessas. Pessoas que possuem uma vida
espiritual fundamentada na lectio divina
conseguem discernir o melhor caminho a seguir sem fazer recurso à prática
descrita acima, mas se servindo da sua inteligência iluminada pela Palavra, das
orientações de pessoas mais experientes nesse caminho (diretor espiritual) e de
seus pastores.
A vida espiritual fundamentada na verdadeira esperança não
aprisiona as pessoas à vontade de Deus quase como se elas não pudessem escolher
entre uma coisa e outra, entre fazer essa ou aquela faculdade, entre investir
em um relacionamento com uma pessoa ou acabar um namoro que só está destruindo.
A vida espiritual fundamentada na esperança cristã dá liberdade de escolhas e a
vontade de Deus vai sendo construída no dia a dia pela vivência do amor.
Compromisso
social
Um outro lado dessa medalha seriam as pessoas que não ligam
muito para vida espiritual, mas estão inteiramente empenhados em construir o
Reino de Deus sobre a terra e o identificam com o progresso social, uma
ideologia ou mesmo um partido político. A esperança deles é o Reino de Deus
totalmente implantado sobre a terra, o que já seria a parusia e a renovação cósmica, segundo alguns autores. A
escatologia deixaria de acontecer no 8o dia (N.T.) e voltaria para o
7o (A.T.), ou seja, deixaria de acontecer após o ocaso do último dia
e passaria a acontecer na história. É interessante perceber que tais grupos são
muito apegados ao estudo do Antigo Testamento, especialmente de passagens que
falam das promessas divinas para Israel que acontecerão sobre a terra. Será que
não estamos diante da mesma realidade apresentada acima na sua versão
espiritual? Agora ela apareceria na sua versão social!
A esperança cristã, com toda a sua força escatológica, se
dilui na esperança de construir o Reino de Deus sobre esse terra. O grito “Vem,
Senhor Jesus!” seria voltado para o sentido intramundano: Jesus nos dá forças
para acabarmos com a injustiça e implantar a igualdade; quando isso acontecer
será a vinda do Senhor! Será que essa não seria a esperança do AT numa vertente
mais universal? Seria esse o fruto da esperança cristã? Acredito que não.
O cristão brasileiro se depara com tanta injustiça,
desigualdade, descaso com os pobres, desvio de dinheiro público[16],
políticos corruptos[17],
violência... Quem acredita nas promessas divinas reveladas em Jesus não pode
ficar passivo diante dessa realidade. Precisamos ir ao encontro dessas
realidade com ações imediatas (sopão, abrigo para os moradores de rua, creches,
manifestações públicas contra alguma ação do governo etc.), de médio prazo (conscientização
política dos fiéis) e longo prazo (mudança da nossa ação eclesial nas paróquias).
Agora gostaria de falar apenas desse último ponto, que acredito ser o mais
importante e revolucionário de todos.
Nossas ações eclesiais são responsáveis pelo desmantelo que
estamos vivendo hoje no Brasil. Nós nos preocupamos apenas com a distribuição
dos sacramentos, não formamos cristãos autênticos, homens e mulheres que creem
no Senhor, dispostos a lutar amorosamente contra o mundo e cheios de esperança
cristã. Os políticos que aprovaram as leis contra a vida e a família, os
políticos que roubaram tanto dinheiro são, na sua maioria, católicos! Eles se
casaram na Igreja, batizaram seus filhos, levaram-nos para primeira comunhão e
crisma. E nós concedemos todos os sacramentos sem propor-lhes nenhuma
conversão! Precisamos reconhecer que o que estamos fazendo dentro da Igreja
está colaborando para a permanência dessa situação, estamos sendo coniventes.
Já conhecemos o Documento de Aparecida e, nos últimos meses, o documento 100 da
CNBB (Comunidade de Comunidades). Já
sabemos de tudo o que eles nos ensinaram, mas o que mudou nas nossas paróquias?
Fazemos tudo igual. No máximo, mudamos os nomes das pastorais ou das ações que
já fazíamos, para nos adequar às novidades.
Desde 1965, a CNBB fala da necessidade de uma renovação das
paróquias, mas, mesmo quando a teologia da libertação era forte, isso não
aconteceu, nem hoje que a RCC e as comunidades novas estão tão atuantes.
Precisamos entender que esse projeto não é ligado à teologia da libertação ou
renovação carismática, mas ao evangelho de Jesus.
Se tivermos cristãos bem formados na fé (confiança e
conteúdo), vivendo em comunidade, celebrando o dia do Senhor... teremos pessoas
que não se acomodarão com essa realidade injusta, sonharão com uma sociedade
mais parecida com o Reino de Deus, trabalharão por isso. Mas nunca esquecerão
que tudo o que fizerem sobre a terra não passará de uma pequena semente da
realidade escatológica já conquistada por Jesus na ressurreição, mas ainda
aguardada na sua manifestação total, sua vinda gloriosa, na renovação cósmica.
Vem, Senhor Jesus!
Pe.
Emilio Cesar Porto Cabral
Professor
da Faculdade Católica de Fortaleza
Pároco
de N.S. da Conceição – Messejana
[2]
A conversão dele (1908) era vista com desconfiança pelos católicos.
[3]
Ele só era casado no civil com sua esposa (cf. João Saebra, in: Charles Péguy, O Pórtico do mistério da segunda virtude,
p. X-XI).
[4]
Cf. Bento XVI, Spe salvi, n. 1-2.
[5]
Utilizarei a Bíblia de Jerusalém nas citações da Bíblia
[6]
Cf. Jean Duplacy,
“ESPERANÇA”, in, Xavier Léon-Dufour (org.), Vocabulário de teologia bíblica. 10a Petrópolis: Vozes, 2009,
p. 289.
[7]
Cf. Jean Duplacy,
“ESPERANÇA”, in, Xavier Léon-Dufour (org.), Vocabulário de teologia bíblica. 10a Petrópolis: Vozes, 2009,
p. 289s.
[8]
Cf. Jean Duplacy,
“ESPERANÇA”, in, Xavier Léon-Dufour (org.), Vocabulário de teologia bíblica. 10a Petrópolis: Vozes, 2009,
p. 220.
[9]
Cf. Jean Duplacy,
“ESPERANÇA”, in, Xavier Léon-Dufour (org.), Vocabulário de teologia bíblica. 10a Petrópolis: Vozes, 2009,
p. 290s.
[10]
Jean Duplacy, “ESPERANÇA”,
in, Xavier Léon-Dufour
(org.), Vocabulário de teologia bíblica.
10a Petrópolis: Vozes, 2009, p. 291-292.
[11]
Cf. Janet Meyer Everts,
“ESPERANÇA”, in, G.F. Hawthone – R.P. Martin – B.T.Lambert, Dicionário
de Paulo e suas cartas. São Paulo:
Paulus – Vida Nova – Loyola, 2008, p. 482-484.
[12] Tradução da CNBB: “em razão da
esperança…”.
[13]
G.F. Hawthone
– R.P. Martin – B.T.Lambert, Dicionário de Paulo e suas cartas. São Paulo: Paulus – Vida Nova – Loyola,
2008, p. 484.
[14]
Subida
do Monte Carmelo 22,2. Cf. S. João da Cruz, LH, 2a Semana do Advento,
segunda-feira, Ofício das leituras.
[15]
Às vezes me pergunto se isso não seria um tipo de adivinhação fantasiada de
espiritualidade
[16]
Na maioria das vezes realizado por “católicos de IBGE”, aqueles que batizamos
os filhos com apenas três encontros de formação, isso quando não os dispensamos
graças à oferta generosa que deram para a Igreja.
[17]
Ver nota anterior.
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